0

Certos hábitos

Posted in ,
     

     O celular fazia barulhos alternados com os trimeliques do vibra e a luzes piscando. No visor "Marcelo" piscava insistentemente, era 18h15, e como nos últimos 7 anos, de segunda a sexta, o celular de Jaqueline tocava as 18h15.

— Alô. - Jaqueline atendeu o celular com uma voz pesada, de quem já na quarta-feira estava farta da semana.
— Oi Jaque, tudo bem com você?
— Vou bem, já já quase saindo, e com você?
— Eu vou indo, ahn... indo, aqui tá tudo bem. - A voz de Marcelo oscilava entre alegre e confusa. — Eu só liguei para desejar um bom descanso para você e um bom dia amanhã.
— Ah, obrigada, bom descanso para você também, e - um curto silêncio constrangedor fez com que Jaqueline mordesse os lábios — acho que é isso.
— Sabe Jaque, às vezes eu penso...
— Marcelo, preciso desligar senão perco o ônibus hoje.
— Ok, hum, tchau.

     Jaqueline desligou o celular respirando aliviada, hoje foi rápido. Já não estava com Marcelo há 5 anos, mas ele continuava a ligar como fazia enquanto namoravam. No começou tentou discutir, argumentar. Com o tempo desistiu, era mais cansativo ir contra do que atender por 3 minutos.
     Foi pra casa pensativa aquela noite, ônibus, metrô, casa. Não estava pensando em Marcelo, mas sim no trabalho, era fim de mês e a contabilidade estava toda em suas mãos.
     Em casa, esquentou a sopa outrora congelada, prendeu os cabelos loiros e cacheados num rabo de cavalo e sentou-se em frente à TV. Adormeceu no sofá, só de camisa e calcinha, assistindo ao jogo entre Palmeiras e Vasco.
     Acordou com os rojões soltos pela vizinhança, caminhou preguiçosamente pelo corredor em direção ao banheiro, no meio do caminho girou os tornozelos em direção ao quarto.  Foda-se, tomo banho amanha. - Resmungou.
     Caiu na cama com a roupa do dia todo e acordou só no dia seguinte, na mesma posição em que deitara. Não percebeu isso, mas as dores nas juntas evidenciavam.
     18h15, novamente a musica Chasing Cars do Snow Patrol voltou a tocar no celular de Jaqueline. Hoje menos amassada pelo dia ela logo atendeu.

— Alô
— Oi Jaque, tudo bem com você?
— Vou bem, já já quase saindo, e com você?
— Faz tempos que não nos vemos. - Disse Marcelo com voz saudosista. 
— Vamos começar de novo com esse papo Má?
— Mas estou com saudades.
— Olha. Não ligo que me ligue - Jaque parou para pensar no trocadilho. — mas não dá para ficarmos nesses papos, tenho que ir. Uma boa noite para você. - E desligou o telefone.

     Na sexta Marcelo não ligou, não era incomum ele às vezes deixar de ligar. No sábado ela saiu para dançar, e durante a balada, um flashback a lá anos 2000, tocou Chasing Cars mixado, como os dois gostavam de ouvir. Ela lembrou dele. No domingo chuvoso de verão ela acordou cedo, comprou flores, e foi ao cemitério. Caminhou descontraidamente até parar em frente uma lápide. "Marcelo Carras Buraque - 1986-2011 - Filho exemplar"
     "Filho exemplar" Jaqueline leu e sorriu com um certo tom de deboche, ela achava a frase muito clichê. Deixou as flores, acenou com a cabeça e foi embora. Segunda-feira chuvosa, herança do domingo, 18h15, o celular de Jaqueline começa a tocar, no visor "Marcelo".

Crédito do texto reservado a Gustavo Zicatti  Projeto Marco Zero


0 comentários:



O que achou da postagem? Comente.
Inscrição por e-mail logo ao lado.

▲ Ir ao topo