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Das questões que eu não sei

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— Espera um pouco, a campainha.
— Você sempre tem alguma coisa melhor pra fazer, parece que não me leva a sério. Quando a gente vai ter essa conversa?
— A campainha...
— Não me importa o que é. Quer saber... se é pra ser assim é melhor a gente terminar.
— Foi a melhor ideia que você teve o dia inteiro. Se isso engrandece seu ego, diz pros seus amigos que quem terminou foi você e que eu estou chorando rios. Vai com Deus e não precisa voltar não.

A essa altura, o carteiro já tinha ido embora. Já imaginei de quem fosse a carta.

❝ Imbé, Rio Grande do Sul. 04 de Fevereiro de 2014. 09h42min A.M. na mesinha com flores.

Lu,


Tenho pensando muito sobre medo e futuro. Sinto um medo incalculável de ser como as outras pessoas e estive a me questionar mais que o normal porque acredito estar sendo. Olha, eu tenho tentado, mas ainda não sou feliz. Quatrocentas pessoas parecem depender de mim para que sua felicidade e paz interior estejam em acordo comum. Tenho negado meus desejos e declarado limites para mim, porque para o mundo minha felicidade não é natural e atinge a moral deles. Sinto que não tenho um amigo que posso chamar de meu, porque todos eles deixam um vácuo em mim que sozinha não posso preencher. Temo por atingir a insanidade, são as coisas que ando pensando. As pessoas com que meu encargo é conviver, em geral, me incitam nojo.

Quanto mais leio, mais dúvidas me surgem. Veja só, que falta de coerência. Acreditemos em Molière, a ignorância não é um trunfo e sim uma calamidade e eu prefiro estar a par, não gosto do comodismo. Ainda não sei no que acredito. Houve um determinado período em que a culpa sobressaiu qualquer forma de devoção e viver assim, me cansava, então eu parei de ter fé. A religião é como o cinto de segurança num carro. Eles não fazem o bem pelo simples fato disso ser o correto, o fazem pelo medo do juízo final, usam o cinto pelo ilógico medo de levar uma multa. Bem... muita coisa deixou de fazer sentido pra mim. Acredite, luto todos os dias para sentir um pouco de compaixão. Mas eles se divertem com a angústia dos outros, os deixam sem nada, não amam ninguém. Prezo por fazer o que é certo e não tenho esperado ninguém prover nada por mim, tenho em mente que a única pessoa responsável pelo retorno que terei sou eu. Tenho seguido a leis que os homens fizeram pra viver em harmonia com outros, tenho sido digna. Acabei por descobrir que a melhor forma de fazer isso é não dizendo o que considero do sadismo que eles alimentam continuamente. 

Eu sinto pela hipocrisia das pessoas e acho tudo muito injusto. Sinto pelas mulheres que são subjugadas, que não tem voz nem liberdade. Sinto pela fome mundial, pela pobreza material e intelectual. Sinto pelo desinteresse ao conhecimento, pela falta de cultura opcional. Sinto pelas pessoas que são submetidas, todos os dias, à perversão da doentia mente humana. Sinto pelo mundo que está derretendo e pelo dia que nós iremos pagar por todo o mal que fizemos, por nossas próprias mãos. Sinto pelas crianças, por sua inocência abrir olhos que deveriam permanecer fechados, mãos que se mexem, mas que deviam estar presas. Sinto pelos jovens e pela influência que eles permitem que o mundo tenha sobre eles, pelas más escolhas que levaram a caminhos sem volta. Sinto pelos casamentos por conveniência, pela falta de respeito e pela burrice que nos condiciona. Eu sinto muito. Sinto pelas pessoas que não vivem a vida que queriam levar, lamento por mim. Lamento também pelas coisas que eu permiti que acontecessem e me arrependo por uma parcela das coisas que não fiz. Vivo num dualismo constante de não saber se fiz de menos ou de mais e permaneço aqui. Inerte. Com sonhos morrendo.

Apesar de não ter chegado à conclusão com algumas coisas, espero que você faça. Que não chegue aos 40 anos e perceba que ainda não fez nada, que só viveu a vida que os outros queriam que você vivesse. Espero que você leia e que continue escrevendo. Espero que você possa se sentir bem fazendo os outros bem e que tenha amigos que lhe preencham e que te instiguem risadas. Espero que você seja diferente das outras pessoas, que não tenha medo do futuro. Olha... eu espero de verdade que você saiba aproveitar a vida que tem.

Com todo amor
 que o cheiro de livros na estante reserva.

P.S.: Não sei menina, não quero que minha opinião interfira muito no que você vai fazer, mas se eu te conheço bem, quando essa carta chegar, você já vai ter terminado o que sabe que não começou direito. Entendo perfeitamente como você está se sentindo. A gente tenta se convencer que alguém com um terço das características que você procura serve, mas a verdade que é não serve pra nada, exceto dar dor de cabeça. Vou viajar pra você sabe onde nas férias, tudo lá é muito tranquilo e quem sabe eu me encontre. Espero-te no saguão, no mesmo lugar de sempre. 

Tive a súbita consciência das questões que eu não sabia. Do não saber por que tantas pessoas sofrem, por que são enganadas, por que fazem o que fazem. Não conseguia compreender qual é a grande sacada por trás dessa história que é viver. Todos nós, estamos inclinados a fazer o mal, a burlar a lei, pelo simples fato de saber que é lei e o que mais me impressionava nessa história toda é que tem gente, que mesmo não sabendo ou vendo muito fundamento nisso de viver, continua fazendo o bem, não por alguma salvação ou recompensa, mas pelo bem.


As variáveis mudam, os argumentos morrem, as questões se transformam. No entanto, se o que a gente vive e sente é real, simples, bonito e natural, acredito que é aí que existe a felicidade.

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